"Nasci a primeira vez em 28 de Maio de 1922. Isto num domingo. Chamaram-me Sontinho, diminutivo de Sonto. Pela parte da minha mãe, claro. Por parte do meu pai fiquei José. Aonde? Na Av. do Zichacha entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Bairros de quem? Bairros de pobres. Nasci a segunda vez quando me fizeram descobrir que era mulato. A seguir fui nascendo à medida das circunstancias impostas pelos outros. Quando o meu pai foi de vez, tive outro pai: o seu irmão. E a partir de cada nascimento eu tinha a felicidade de ver um problema a menos e um dilema a mais. Por isso, muito cedo, a terra natal em termos de Pátria e de opção. Quando a minha mãe foi de vez, outra mãe: Moçambique.
A opção por causa do meu pai branco e da minha mãe negra. Nasci ainda mais uma vez no jornal "O Brado Africano". No mesmo em que também nasceram Rui de Noronha e Noemia de Sousa. Muito desporto marcou-me o corpo e o espírito. Esforço, competição, vitória e derrota, sacrifício até à exaustão. Temperado por tudo isso.
Talvez por causa do meu pai, mais agnóstico do que ateu. Talvez por causa do meu pai tenha encontrando no Amor a sublimação de tudo. Mesmo da Pátria. Ou antes: principalmente da Pátria. Por causa da minha mãe só resignação. Uma luta incessante comigo próprio. Autodidacta. Minha grande aventura: ser pai. Depois eu casado. Mas casado quando quis. E como quis. Escrever poemas, o meu refúgio, o meu país também. Uma necessidade angustiosa e urgente de ser cidadão desse país, muitas vezes até altas horas da noite".
Depoimento autobiográfico, Janeiro de 1977, Moçambique.
José João Craveirinha (1992 – 2003) nascido em Maputo iniciou a sua carreira como jornalista e escritor em "O Brado Africano", e colaborou/trabalhou com diversos órgãos de informação em Moçambique. Teve um papel importante na vida da Associação Africana a partir dos anos 50 onde participou da resistência anticolonial. Esteve preso pela Pide, de 1965 a 1969, na celebre Cela 1 com Malangatana e Rui Nogar, devido sua militância anticolonial.
Tem muitas obras publicadas, porém grande parte da sua poesia ainda se mantém dispersa na imprensa e outras permanecem inéditas não tendo sido incluída nos livros que publicou até à data. Craverinha é considerado um dos grandes poetas da África e da Língua Portuguesa sendo considerado uma das vozes literárias mais influentes de Moçambique. Sua poesia tem uma dicção telúrica na qual busca expressar as múltiplas faces culturais de seu país.
Quero ser tambor
Tambor está velho de gritar
oh velho Deus dos homens deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente dos trópicos.
E nem flor nascida no mato do desespero.
Nem rio correndo para o mar do desespero
Nem zagaia temperada no lume vivo do desespero
Nem mesmo poesia forjada na dor rubra do desespero. Nem nada!
Só tambor velho de gritar na lua cheia da minha terra
Só tambor de pele curtida ao sol da minha terra
Só tambor cavado nos troncos duros da minha terra!
Eu!
Só tambor rebentando o silêncio amargo da Mafalala
Só tambor velho de sentar no batuque da minha terra
Só tambor perdido na escuridão da noite perdida.
Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
E nem rio
nem flor
E nem zagaia por enquanto
E nem mesmo poesia.
Só tambor ecoando a canção da força e da vida
só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!
Oh velho Deus dos homens
Deixa-me ser tambor
Só tambor!
Fábula
Menino gordo comprou um balão
e assoprou
assoprou com força o balão amarelo.
Menino gordo assoprou
assoprou
assoprou
o balão inchou
inchou
e rebentou!
Meninos magros apanharam os restos
e fizeram balõezinhos.
Um homem não chora
do homem que nunca chora.
Eu julgava-me um homem!
Na adolescência meus filmes de aventuras
punham-me muito longe de ser cobarde
na arrogante criancice do herói de ferro.
E agora choro.
Como um homem treme.
Como chora um homem!
Moçambiquicida
Das incursões bem sucedidas aos povoados
sacarinas capulanas de fumaça
e uma fervura de cincotabuadas e uns onze
- ou talvez só dez -
cadernos e um giz
espólio das escolas destruídas.
Sobrevivos moçambiquicidas
imolam-se mesclados
no infuturo.
Grito Negro
Eu sou carvão!
E tu arrancas-me brutalmente do chão
Eu sou carvão!
E tu acendes-me, patrão,
para te servir eternamente como força motriz mas eternamente não, patrão.
Eu sou carvão
e tenho que arder sim;
queimar tudo com a força da minha combustão.
Eu sou carvão;
tenho que arder na exploração
arder até às cinzas da maldição
arder vivo como alcatrão, meu irmão,
até não ser mais a tua mina, patrão.
Eu sou carvão.
Tenho que arder
Queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim!
Eu sou o teu carvão, patrão.
José Craverinha.
Por: Raimana Bentes.