No dia 8 de março de 1914, Fernando Pessoa apresenta ao mundo três poetas diferentes:
Alberto Caeiro: um mestre bucólico.
Ricardo Reis: um neoclássico estóico.
Álvaro de Campos: um poeta futurista.
Fernando Pessoa estabelece um diálogo com diferentes personagens que não se conhece, ou seja, se dá em nível literário, de personalidade complexa, conseguiu encontrar a forma de expressão para cada eu existente no seu eu, com a criação dos heterônimos.
Criando os heterônimos e deixando subentender o diálogo entre eles travado, o que é reconhecível principalmente na poética de Caeiro e de Campos, o poeta conseguiu liricamente a dramatização dos pensamentos dos seus vários eus.
Álvaro de Campos é um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Era um engenheiro de educação inglesa e origem portuguesa, mas sempre com a sensação de ser um estrangeiro em qualquer parte do mundo.
Entre todos os heterônimos, Campos foi o único a manifestar fases poéticas diferentes ao longo de sua obra.
Começa sua trajetória como um decadentista (influenciado pelo Simbolismo), mas logo adere ao Futurismo. Após uma série de desilusões com a existência, assume uma veia niilista, expressa naquele que é considerado um dos poemas mais conhecidos e influentes da língua portuguesa, Tabacaria.
Peculiaridades
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Sua obra
A sua obra é dividida em três fases distinta:
Uma primeira, a decadentista, onde dá o corpo ao seu tédio, ao enfado, à náusea e saturação da civilização provocadas pela necessidade de novas sensações. Necessita de romper com o colete de forças que o prende às horas monótonas. Encontra nos estupefacientes essa possível fuga. Contudo, é com o seu "Mestre" Caeiro que compreende qual o caminho a tomar. É então que surge uma segunda e estridente fase. Impactante, chocante até, eufórico e louco.
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Numa terceira fase (Intimista), anula-se a diversidade vivida na pluralidade de sensações. Campos torna-se a "alma gêmea" do seu pai Ortônimo. Sente-se, também ele, um "vaso que a empregada deixou cair, excessivamente, pela escada a baixo". A 3ª fase está repleta de arrependimento, náusea e saudade. Torna-se num céptico envolvido na dor de pensar e nas saudades da infância. Esta 3ª fase poderá ser encarada como o resultado de uma tentativa frustrada de quem se refugia na euforia para anular e recalcar a dor primitiva que o assombra...
Poesia
Sua poesia é campo de expressão do sentir, pouco propício, portanto, à reflexão metapoética. Como, fica patente nesta poesia:
Quando olho para mim não me percebo
Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
O ar que respiro, este licor que bebo,
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.
Nem nunca propriamente reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Serei tal qual pareço em mim? Serei
Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
O mais moderno dos heterônimos pessoanos quase não trata no interior de seus poemas uma das características centrais da modernidade literária: a crise da linguagem. O poema acima e tantos outros de Campos nos falam sobre o dilaceramento do eu, sobre o desencontro, sobre o esfacelamento, sobre o mal estar que significa viver, mas toda essa problemática não deságua numa reflexão de nível crítico e estético sobre a construção da identidade heteronímica, nem se traduz por uma discussão sobre os impedimentos da linguagem na expressão dos desajustes da modernidade.
Campos é a necessidade quase absurda de Pessoa de "sentir tudo de todas as maneiras". Existe algures na ânsia de sentir desesperadamente e o desespero de não o conseguir. Tentou a concentração de todo o gênero de sensações em si, e tudo o que largou foi um profundo tédio e horror à arte de viver. Tentou a materialização do Unanimismo francês sem qualquer preocupação intelectual ao escrever (tal como relata numa das suas fictícias entrevistas):
"Tenho o desejo de ser de todos os tempos, de todos os espaços, de todas as almas, de todas as emoções e de todos os entendimentos (...) a alma não cata piolhos na lógica, nem olha para as unhas na estética".
Algumas Poesias
A Frescura
Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.
Eu, eu mesmo
Eu, cheio de todos os cansaços
Quantos o mundo pode dar. —
Eu...
Afinal tudo, porque tudo é eu,
E até as estrelas, ao que parece,
Me saíram da algibeira para deslumbrar crianças...
Que crianças não sei...
Eu...
Imperfeito? Incógnito? Divino?
Não sei...
Eu...
Tive um passado? Sem dúvida...
Tenho um presente? Sem dúvida...
Terei um futuro? Sem dúvida...
Ainda que pare de aqui a pouco...
Mas eu, eu...
Eu sou eu,
Eu fico eu,
Eu...
Do Times, claro, inclassificável, lido,
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo....
Santo Deus!... E talvez a tenha tido!